Carta Maior:
"Governos populares, movimentos sociais e mudança social na América Indo-Afro-Latina
Os primeiros passos até agora estão marcados pelo desenvolvimento de programas de governo que, levando em conta a correlação de forças existente e as possibilidades de modificá-la favoravelmente, buscam em primeiro lugar consolidar a gestão governamental nascente, mas sem reduzir o agir político revolucionário a isso. A construção da hegemonia popular é vital e a ela está ligada o aprofundamento da democracia herdada, simultaneamente com a construção de uma democracia radical. O artigo é de Isabel Rauber.
Isabel Rauber (*) – Rebelión
Fragmentos do livro: Dos passos adelante, uno atrás. Vadell Editorial, Caracas, 2010.
Opção democrática para transformar a sociedade ou “via eleitoral” para tomar o poder?
As experiências políticas que deram lugar à constituição de governos populares ou revolucionários no continente mostraram que ganhar as eleições nacionais e assumir o governo nacional, se não conduz diretamente a uma revolução, tampouco significa necessariamente uma derrota dos processos de mudança social. Em cua curta trajetória, estas experiências evidenciam que o acesso ao governo nacional significa, além de assumir as responsabilidades e dificuldades inerentes ao cargo, ter acesso a uma instrumento político chave para desenvolver e estimular processos de empoderamento coletivos e impulsionar o processo de transformação social.
A ampliação de processos democráticos participativos desde baixo promovidos agora conjuntamente desde o aparato governamental estatal pode ativar e aprofundar os processos de constituição do ator coletivo. Isso inclui desde a realização de campanhas massivas de alfabetização até processos que promovem, desde baixo, a participação dos atores sociopolíticos (movimentos sociais, movimentos indígenas, atores sociais diversos) no exercício de funções de governo e do aparato estatl. Isso implica a abertura de processos de transformação das formas e normas do exercício de funções institucionais e da própria institucionalidade, processos que exigem, entre outras coisas, a criação de espaços e mecanismos de participação e controle popular em todas as instâncias superestruturais, recortando cada vez mais, por meio deles, os âmbitos de domínio dos poderes instituídos do capital e da burocracia que o acompanha e recicla.
O lugar nevrálgico das Assembleias Constituintes
Nos atuais processos indo-afro-latinoamericanos de busca e construção democrática de uma nova sociedade, resulta central a realização de assembleias constituintes. Delas emana o substrato jurídico, político e social para uma nova institucionalidade, engendrada embrionariamente nos processos de lutas sociais, abraçados pela resistência e as demandas históricas dos povos deste continente (colm suas organizações sociais e políticas), em primeiro lugar dos povos indígenas originários e suas comunidades.
Obviamente, não cabe pretender que as assembleias constituintes sejam o motor da mudança. Os povos devem se preparar para plasmar nelas seus pontos de vista, propondo e defendendo conteúdos de acordo com seus interesses e sua projeção estratégica. Mas nisso, como em tudo, é importante compreender que a mudança da sociedade é processual: o mais provável é que não se alcancem todos os objetivos na primeira assembleia constituinte. Será preciso realizar tantas assembleias constituintes quanto vá reclamando e possibilitando o aprofundamento e radicalização de cada processo, marcado em primeiro lugar pelo amadurecimento político do ator coletivo, força sociopolítica da mudança.
A modificação das bases jurídico-institucionais de uma nação é também parte do processo de construção cotidiana sistemática e permanente dos povos. Isso implica uma modificação da concepção acerca do lugar e do papel do Estado nos processos sociais de mudança. Tanto em sua interrelação com a chamada “sociedade civil” – com movimentos e organizações sociais, partidos políticos, organizações comunitárias, religiosas, etc. – como em sua interrelação com os governos nacional e estaduais, provinciais, departamentos, etc., no jurídico-institucional e no democrático-participativo.
Os atuais processos político-solciais indo-afro-latinoamericanos, particularmente os que ocorrem na Venezuela e na Bolívia, ensinam que desde o governo, com vontade política como substrato, é possível impulsionar a participação protagônica do povo no processo, avançar na construção desde baixo do ator coletivo, propiciando processos de desenvolvimento de sua consciência e organização, pilares da construção do poder popular. É precisamente por isso que estas experiências se empenham em apoiar processos de transformação cultural e política (prática-educativa) dos povos, entendendo-os como substrato indispensável para levar a cabo mudanças sociais desde a raiz, sustentá-las e aprofundá-las.
Isso torna-se evidente particularmente no processo atual de transformação que ocorre na Bolívia, que se autodefine como uma revolução democrático cultural que se desenvolve desde baixo. As conquistas estão à vista, também as limitações, as ameaças e os desafios. Uma realidade é a que existe em tempos de oposição e luta e outra é a que vai se configurando quando os atores sociais que protagonizam as lutas têm que assumir responsabilidades governamentais e estatais. Assumir a administração de um país não é somente difícil, mas também modifica a realidade dos demandantes de ontem que agora podem e devem decidir, que chegam a posições de poder e do aparato burocrático, que tem recursos e podem decidir, ao menos em parte, como emprega-los. A velha cultura setorial ou corporativa pode voltar a emergir e frear ou fazer estragos nos processos. É por isso que a organização e a educação política ocupam ou devem ocupar o lugar central simultaneamente com todas as demais tarefas e atividades. Não fazê-lo pode levar ao enfraquecimento ou inclusive ao naufrágio do projeto revolucionário.
Dar as costas a tais contendas implicaria de fato a negação de toda a política, ao mesmo tempo em que tornaria sem sentido as lutas sociais, os processos de acumulação de forças e a construção sociopolítica toda, já que – de antemão – estes teriam um limite que, por definição, não deveria ser ultrapassado. Do mesmo modo seria um contrassenso circunscrever toda a ação e a construção sociopolítica á luta por ganhar eleições, confundindo fins e meios, transformando o caminho em objetivo, enclausurando assim toda projeção, tração, organização e capacitação das forças sociais para atuar em favor da superação do estado de coisas.
Fazer política é imprescindível e fundamental.
O problema reside em como fazer política de um modo e com um conteúdo diferente do tradicional, para não ser funcional ao poder do capital. Os novos movimentos sociopolíticos apelam a metodologias participativas e buscam incrementá-las e desenvolvê-las com o objetivo de ampliar as articulações sociais e superar a desconfiança instalada nas maiorias populares em relação ao Estado, ao governo, aos partidos políticos, os políticos e a política, e a apatia, o apoliticismo e o “quemeimportismo” reinante em amplos setores da população e que os afasta de seu protagonismo vital e insubstituível.
O exposto acima permite reafirmar uma hipótese: nas condições atuais da América Indo-afro-latina, a disputa política eleitoral pelo governo nacional é parte dos processos de mudança. Nesta perspectiva, o que poderia ser entendido como “via eleitoral” para realizar as transformações sociais, resulta hoje para os povos uma possibilidade real, um caminho para fortalecer ou debilitar os processos de construção, acumulação e crescimento de poder, consciência, propostas e organização política próprias, e de (auto) constituição dos atores sociais e políticos em sujeito coletivo (popular) de mudança. Mas esta opção não é o “caminho eleitoral para a tomada do poder”; implica outro modo de conceber (e realizar) a transformação social.
“Não se trata de substituir a insurreição pelas urnas”
Se uma força ou conjunto de forças sociopolíticas que defendem a mudança social compreendem que esta transita ligada aos processos democráticos e democratizadores, não podem conceber sua participação nos processos eleitorais como um “truque” para chegar ao governo e “dar o manotazo”.
Pretender que uma vez vencidas as eleições, ao assumir o governo pode-se atuar ignorando a correlação de forças existente (consciência, organização, hegemonia cultural e poder econômico), conduziria, ao contrário de suas suposições, a estéreis enfrentamentos com os adversários políticos, a semear a confusão e o isolamento do processo sociotransformador que se pretende construir e ampliar, o que supõe aprofundar a construção de força e poder próprios, e a relegar a luta cultural democratizadora, chave da construção de uma nova sociedade e de uma nova civilização humanos, coração do trânsito – com marchas e contramarchas – para o novo.
Este trânsito reclama como eixo vertebrador a conformação de um ator coletivo, força social e política de libertação capaz de tracionar permanentemente o processo sóciotransformador na direção de objetivos superadores, atuando para isso com protagonismo e autonomia políticas a respeito do aparato governamental-estatal, nos âmbios parlamentar e extra parlamentar articuladamente.
Conservar o governo ou governar para a mudança?
Os representantes políticos do capital e seus acólitos podem prescindir do protagonismo popular porque se apoiam na hegemonia do poder e de seus aparatos ideológicos, econômicos e extraeconômicos. Mas as forças populares, se chegam ao governo e cometem o erro de deixar-se enamorar pelo poder e seus mecanismos tentaculares de envolvimento, se optam por se acomodarem nos cargos ou “acertar” por cima com os poderosos, fazendo concessões de todo tipo esperando em troca perpetuar-se no governo, dificilmente o conseguirão, mas se o fizerem, estarão virando as costas aos objetivos transformadores e aos movimentos sociais que os levaram a tais posições políticas.
É injustificável, por um lado, que o triunfo da esquerda em governos locais ou nacionais seja alcançado propondo construir o novo e termine logo aceitando ou inclusive promovendo políticas neoliberais sustentadoras/salvadoras do capitalismo. Por outro lado, há o perigo de ser tragado pela cultura do poder burocrático superestrutural, deixando-se levar pela tentação de governar acompanhado por especialistas e assessores, confiando o processo de mudança a resoluções e decretos que, supostamente, desde cima, produzirão reformas e marcarão o rumo e o sentido das mudanças. Em qualquer um dos casos, se os povos não intervem, a maquinaria institucional funcional ao capital terminará tragando a potencialidade e a perspectiva de transformação social dos que participam no governo.
As revoluções sociais são idênticas à participação protagônica de seus povos; diretamente proporcionais a ela. Se, por exemplo, aplica-se esta singela equação aos processos populares revolucionários em curso, às medidas governamentais e seus procedimentos, os resultados saltam à vista: menor participação popular, menor conteúdo e alcance revolucionário, menos revolução. Conclusão: o nó górdio estratégico dos processos revolucionários não reside na pertinência das resoluções governamentais nem na sabedoria dos governantes e de seu entorno, mas sim na vontade popular, em sua consciência e organização para participar nas definições e soluções, impulsioná-las e sustentá-las.
Não se avança com medidas superestruturais por mais justas e razoáveis que estas sejam. É preciso construir protagonismo popular coletivo e isso só pode ser feito forjando-o a cada passo e em cada passo. A aprendizagem como o ensino começa nas práticas cotidianas. Educar no novo significa desenvolver novas práticas, dar o exemplo. Esta é a chave pedagógica vital das revoluções construídas desde baixo. Elas só podem ser aprofundadas com a construção e o fortalecimento do sujeito coletivo das mesmas, o ator sóciopolítico capaz de tracioná-las e impulsioná-las permanentemente para objetivos radicalmente superiores.
Um governo de esquerda não pode se limitar a fazer uma “boa administração”
Participar das eleições para ocupar espaços/frações do poder existente, limitando-se a exercê-lo “corretamente”, ocupando os correspondentes espaços parlamentares ou governamentais nacionais ou locais, conduz também a dissecar e até anular a perspectiva transformadora.
O problema não está nas pessoas: considerados em si mesmos os governantes são boas ou más pessoas. Como diz um sábio amigo: não há nada pior que pessoas boas e honestas em instituições más e perversas (como são as do capital). Porque essas pessoas, empenhadas em marcar sua diferença em relação a funcionários incapazes ou corruptos, centram seu agir em “fazer bem seu papel” para demonstrar que são inatacáveis. Com sua gestão terminam limpando a cara de tais instituições e contribuem, de modo consciente ou não, para relegitimar, reoxigenar e reproduzir o sistema do capital e suas lógicas de dominação.
A corrupção é um mal que deve ser erradicado, mas é inerente ao sistema regido pelo mercado. Este a cria, afiança-a e generaliza-a, convertendo-a em um flagelo que logo deve combater. Supor que “boas e honradas pessoas” que façam uma administração “honesta” salvarão a sociedade de todos os males, e que, o que deve ser fazer portanto é fazer com que tais pessoas sejam candidatas é, no mínimo, uma ingenuidade inadmissível.
Quando um projeto político se limita a exercer “honradamente” os cargos de governo, sem apelar à transformação e à abertura dos mesmos à participação dos povos e de suas organizações sociais ou comunitárias, está contribuindo para o descrédito do sentido político transformador que tem para os atores sociopolíticos participar da disputa democrática-eleitoral com o objetivo de chegar a parlamentos e governos. Além disso, isso termina geralmente abortando o processo político-social, favorecendo posicionamentos pessoais.
Os casos mais evidentes neste sentido são os dos parlamentares eleitos em nome de movimentos sociais ou de organizações políticas de esquerda e que logo acabam cortando todo o vínculo com tais organizações, dedicando-se a fazer do mandato um espaço para suas ambições pessoais, ou um lucrativo posto de trabalho. Esse é, precisamente, o jogo do poder: quebrar, isolar, manipular ou corromper.
Um governo revolucionário não se define como tal pelo currículo, nem por ser “bom e honrado” em comparação com os governantes tradicionais do sistema. Ainda que estas qualidades sejam elementarmente requeridas, sua projeção ultrapassa o nível pessoal: relaciona-se diretamente com sua capacidade de colocar os espaços de poder em função da transformação revolucionária, abrindo as portas do governo ao povo, construindo um novo tipo de institucionalidade, de legalidade e legitimidade, baseada na participação do povo na tomada de decisões políticas (embasamento da Assembleia Constituinte).
A única perspectiva e base de apoio dos governos populares reside em sua profunda e crescente articulação com os povos, com os stores sociais, construindo em conjunto mecanismos que encurtem as distâncias entre representação política e protagonismo social.
A tarefa titânica dos governos revolucionários não consiste em substituir o povo, nem em “tirar de suas cabeças” boas leis, e muito menos demonstrar que são mais inteligentes do que todos, que têm razão e, por isso, “sabem governar”. Impulsionar revoluções a partir de governos passa por fazer destes uma ferramenta política revolucionária: desenvolver a consciência política, abrir a gestão à participação dos movimentos indígenas, dos movimentos sociais e sindicais, dos setores populares, construindo mecanismos coletivos e estabelecendo papeis e responsabilidades diferenciadas para co-governar o país.
Trata-se de abrir as portas do governo e do Estado à participação das maiorias na tomada de decisões, na execução das mesmas, e no controle dos resultados, na medida em que a construção política e a transformação das bases jurídicas das instituições estatais e governamentais o possibilite. Daí o papel central das assembleias constituintes nestes processos.
Estar no governo não é o mesmo que governar para a mudança com o protagonismo crescente das forças sociais extraparlamentares ativas, abrir portas e promover transformações maiores. Em tal caso, constituir-se em força política governante significa para as forças sociais transformadoras contar com um importante instrumento político para impulsionar integralmente a transformação social. No entanto, vale a pena reiterar, não há métodos que garantam resultados. Nem a tomada do poder, nem a participação eleitoral, nem a chegada a um governo provincial ou nacional constituem, em si mesmo, vias de mudanças revolucionárias. A transformação social é um caminhar aberto, cheio de incertezas e obstáculos, que tem uma trincheira de possibilidades para avançar na direção da nova civilização: a (auto) construção do sujeito revolucionário coletivo.
O lugar e papel protagônico dos atores sociopolíticos nesta caminhada é indispensável em todas as dimensões, tempos e tarefas do processo político transformador. Articuladamente com isso vão se definindo os caminhos, os métodos e os instrumentos a empregar, aqueles que é preciso criar, etc. A transição para outra sociedade exige, além disso, a articulação dos processos locais, nacionais e/ou regionais com o trânsito global para um mundo diferente.
Formar uma nova cultura, como a socialista, por exemplo, não implica só lutar contra o capitalismo anterior, contra os traços do passado, mas sim também dar conta da influência do capitalismo contemporâneo e de seus modos de ação mundialmente contagiosos. A construção de homens e mulheres novos, a construção de uma nova civilização, de um novo modo de vida (humanidade-natureza) envolve um empenho local parte de um processo transformador universal, que tem seu centro na conformação de um sujeito revolucionário global, expressão de uma humanidade que, conscientemente, queira viver de um modo diferente do até agora criado e imposto pelo capital, e se decida a construí-lo e sustentá-lo.
Os avanços se produzem em primeira instância e geralmente no âmbito de um país ou de vários, mas cabe destacar que eles vão construindo consensos regionais e internacionais, em temáticas civilizatórias que defendem a vida, articulando diversos processos transformadores (1). Na América Indo-afro-latina abrem-se hoje grandes oportunidades para isso, dado o amadurecimento convergente de amplos e experientes movimentos sociais urbanos e rurais, movimentos indígenas e a coincidência histórica de governos como os da Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba, Brasil, Nicarágua, El Salvador, Uruguai, entre outros. Esta realidade emerge da acumulação de resistências e lutas dos povos, e marca o predomínio da tendência transformadora que ganha espaço por meio das lutas e construções sociais.
Protagonismo e responsabilidades políticas dos movimentos sociais
O amadurecimento alcançado pelos movimentos indígenas e sociais em anos de resistências e lutas sociais, foi incrementado pela experiência que vivem aqueles que constituíram governos e conjugam suas atividades políticas e sociais para aprofundar processos populares coletivos de construção de poder próprio desde baixo em simultânea disputa com o poder do capital.
Esta situação eleva o debate dos movimentos sociais para uma dimensão qualitativamente diferente da até agora experimentada: trata-se de dar conta do que eles mesmos construíram, de assumir-se também como parte dos governos e co-governar. Não é politicamente válido resistir, lutar e conquistar governos se não se assume (ou não se pode assumir) a responsabilidade de (co)governar com autonomia (4), mas articulados com seus representantes para participar da tomada de decisões, do controle da gestão pública e para apresentar propostas próprias construídas desde baixo para os de baixo. Trata-se de transformar radicalmente também as instituições e seu papel na sociedade e vice-versa, e nisso, como em tudo, os movimentos sociais, todos os povos, têm que se envolver.
Já não bastam as resistências e as lutas antineoliberais; não basta sobreviver. É vital superar o estado defensivo e construir-se como sujeitos protagonistas de sua história. Isso implica dar conta da nova realidade sociopolítica, de suas características e dimensões, suas tarefas e seus novos desafios. Eles implicam para os movimentos indígenas e sociais do campo popular mover-se em um terreno histórica e politicamente desconhecido até o presente: o terreno da liberdade de pensar e elaborar propostas coletivamente, de apresentá-las e discuti-las cara a cara com o Executivo ou os parlamentos, apresentando-se como protagonistas não mais das lutas contra o outrora poder do Estado e o governo, tampouco pedindo concessões ou satisfação de demandas setoriais ou corporativas. É tempo de percorrer caminhos para mudar pela raiz o conteúdo social dos instrumentos tradicionais do Estado e do governo, buscando criar os meios para fazê-lo, participando deles, convertendo-os em ferramentas das mudanças, enchendo-as de participação popular e comunitária gestada desde baixo. Em tais processos de luta pelas mudanças, reside a possibilidade de que os diversos atores sociais atomizados encontrem-se e constituam-se como ator político coletivo capaz de definir protagonicamente os rumos de sua história.
Compreender que se trata de um processo constituinte é chave. Isso implica compreender que não existe um “ser” nem um “dever ser” definidos a priori, que não há sujeitos, nem caminhos, nem tarefas, nem rumos e resultados pré-estabelecidos; não há garantias nem situações irreversíveis. Trata-se de uma luta constante, de apelar incansavelmente à imaginação e à vontade dos atores participantes (auto) desafiando passo a passo sua vontade para protagonizar cada vez mais integral e profundamente o processo de mudanças, processo que abriram sabendo o que não queriam, mas sem ter plenamente estabelecido o que queriam. Trata-se de um processo vivo, aberto, dinâmico, contraditório, tenso e desafiador. Este caráter constituinte abarca e define os sentidos, as dimensões e ações do processo de mudanças, ou seja, os próprios sujeitos. Trata-se, na verdade, de um processo interconstituinte de poder, projeto e sujeitos. E como tudo isso vai se definindo de modo concatenado pela participação (integral) dos atores sujeitos, o resultado é um processo autoconstituinte, ou seja, consciente e aberto. Não há resultados nem sujeitos nem projetos ou poderes pré-concebidos nem garantidos. Tudo está em jogo permanentemente.
Precisamente por isso os atuais processos democrático-revolucionários que se desenvolvem no continente em disputa frontal com a hegemonia do poder colonial-capitalista exigem o crescente e renovado protagonismo dos movimentos indígenas, sociais, camponeses, de mulheres, trabalhadores, ecologistas, intelectuais, etc.
No entanto, a ausência dos tradicionais conflitos anti-governamentais criou uma situação de calma e refluxo dos movimentos. Em parte, isso se deve também ao fato de que os que governam interpretam esta situação de calma como uma delegação do poder de decisão dos movimentos para eles, com o que se incentiva uma tendência cultural quase natural de decidir desde cima, que pressiona administrativamente aqueles que ocupam cargos governamentais e estatais.
Superada a “surpresa” inicial que pode produzir o salto da luta das ruas para a presença no governo, o desafio é implementar propostas concretas que permita, por um lado, fortalecer e articular as organizações sociais e políticas dos povos, e, por outro, aprofundar os processos de questionamento das medidas regressivas do neoliberalismo, frear sua implementação e, onde seja possível, anular sua vigência e avançar criando e construindo o novo, incluindo nisso o aprofundamento das dimensões do exercício efetivo da democracia desde baixo, para os de baixo e em função dos interesses coletivos.
Os primeiros passos até agora estão marcados pelo desenvolvimento de programas de governo que, levando em conta a correlação de forças existente e as possibilidades de modificá-la favoravelmente, buscam em primeiro lugar consolidar a gestão governamental nascente, mas sem reduzir o agir político revolucionário a isso. A construção da hegemonia popular é vital e a ela está ligada o aprofundamento da democracia herdada, simultaneamente com a construção de uma democracia radical que abra o horizonte para a participação multidimensional dos atores sociopolíticos diversos, fortalecendo sua (auto) constituição em ator coletivo, sujeito de sua história.
Romper os mitos da cultura política instalada pelo capital e subordinada a seus interesses
Nos atuais processos de democratização abertos por governos populares não basta que os representados reclamem aos representantes, não basta protestar, “tomar distância” para “seguir de perto” as gestões de governo. O “quemeimportismo” político é filho da ideologia do aparente não-compromisso neoliberal, e nas atuais condições é subordinado à sobrevivência de sua hegemonia.
É inadmissível que , em tais situações, os movimentos sociais, indígenas, camponeses, urbano-populares, de mulheres, etc., rejeitem compartilhar determinadas responsabilidades e tarefas políticas articuladas a ações de governo, esgrimindo argumentos tais como: o medo de ser cooptados ou manipulados pelos governantes ou pelas estruturas de poder. A pergunta correspondente neste caso é: cooptados por quem se o governo é deles mesmos? Obviamente pode haver cooptação, acomodação, complacência, etc., sempre existem tais perigos, como também outros. Mas a cooptação, a acomodação ou a complacência respondem a casos individuais, e estes ao isolamento entre representantes e representados. Mas se trata de participar coletivamente, de discutir como atores sociais e políticos, de interagir como povo organizado. Em tais situações a cooptação ou complacência desaparece como possibilidade.
Nesta perspectiva, a negativa ou reticência a participar interagindo com autonomia no processo governamental, inclina a balança das mudanças à paralisia e retranca dos processos abertos. Os destinos, possibilidades e alcances dos processos revolucionários abertos no continente, os conteúdos e alcances da ação governamental e a participação política dos movimentos sociais estão genealogicamente entrelaçados. A escassa participação autonômica (não subordinada) dos de baixo acentua as persistentes tendências à burocratização do político institucional e sua paulatina substituição pelo administrativo superestrutural e a burocracia correspondente, e faz dos outrora protagonistas – no melhor dos casos marionetes da história manipulados – todos pela hegemonia do poder do capital anulando-os em sua possibilidade de constituir-se como sujeitos capazes de criar sua história e lutar para torná-la realidade.
Este novo tempo político aberto aos desafios sócio-transformadores gestados desde baixo nas resistências e lutas dos movimentos indígenas e sociais, demanda deles elevar-se sobre prejuízos e dogmas para protagonizar as decisões de hoje e levá-las adiante, tornando realidade as consignas do passado e dando os passos necessários para fortalecer o protagonismo coletivo do conjunto de atores sociais e políticos revolucionários e de todo o povo. E para isso é fundamental instalar ou reinstalar o trabalho político, a formação (descolonizadora) e a organização (articulada intercultural).
Fortalecer o instrumento político é central
Este instrumento pode potencializar o desenvolvimento de tarefas políticas, culturais e ideológicas que promovam a participação protagônica do conjunto de atores sociais e políticos revolucionários, construir canais e ferramentas de informação e organização, abrindo canais institucionais e não institucionais para sua participação consciente, capacitada, organizada e crescente nas diversas dimensões da vida social.
Isso se liga diretamente à realização de atividades orientadas a fortalecer o desenvolvimento da consciência política assumida pelos atores sociopolíticos, fundamentalmente, estimulando a recuperação e reflexão crítica de suas experiências concretas de construção de poder próprio, criando âmbitos coletivos de intercâmbio e produção de pensamento crítico de seus processos de mudanças, contribuindo efetivamente para o crescimento e fortalecimento da consciência coletiva. Abrir espaços para periódicas reflexões sobre as novas realidades resulta vital para o desenvolvimento político-cultural dos movimentos sociopolíticos (e de todo o campo popular).
A ideologia da mudança, como o sentido e suas definições estratégicas são parte do processo social vivo, e não um dogma apriorístico estabelecido desde fora das lutas dos povos por alguma vanguarda partidária que os “demais” teriam que assimilar. A consciência política dos atores sociopolíticos do povo se forja e cresce nos processos de resistência, luta e construção de alternativas, em interdefinição constante dos rumos e objetivos estratégicos. Estes não vêm dados do além, mas vão sendo construídos (e modificados) a partir do cotidiano e dos modos de vida e experiências de luta e sobrevivência diversos que existem em cada sociedade, em cada comunidade.
O debate estratégico está aberto. E se manifesta através dos atuais processos de lutas sociais para avançar nas definições, implementação ou aperfeiçoamento das propostas de mudanças radicais nas sociedades onde tal disputa está se desenvolvendo abertamente, construindo simultaneamente caminhos que questionam coletivamente o atual sistema mundo ao mesmo tempo que o vão redesenhando “para mais além do domínio do capital” (Mészáros).
(*) Isabel Rauber. Doutora en Filosofía. Diretora da Revista “Pasado y Presente XXI”. Professora da Universidade Nacional de Lanús. Educadora popular. Estudiosa dos processos políticos dos movimientos sociales e indígenas de indo-afro-latinoamérica. www.isabelrauber.blogspot.com; e-mail: irauber@gmail.com
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