sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"PT" O reconhecimento da realidade não equivale à aceitação de sua imutabilidade.


Viva o povo brasileiro
O povo brasileiro deu prova de elevada consciência política em face da solapa da mídia empresarial, que fabricou crises à exaustão sempre apresentando o país à beira de um iminente colapso. A unção da primeira mulher ao cargo máximo da nação não foi contradita por uma maioria parlamentar hostil.
“Fui vítima de muitos preconceitos”, reiterou o ex-mandatário da República ao agradecer a recepção em São Bernardo do Campo no retorno às ruas. Retirante nordestino, oriundo de uma região estigmatizada. Trabalhador manual, condição depreciada pela tradição escravagista que dedicava aos escravos as lides com as mãos. Sindicalista emergente do operariado, em um país onde a ascensão social foi sempre reserva de mercado dos bacharéis. Fundador de um partido de novo tipo, classificado como porta-voz da “ideologia da discórdia social”, por recusar a complementariedade e a colaboração entre o capital e o trabalho. Argumento útil para justificar a repressão policial-militar à militância política. Tudo serviu para execrar a figura plebéia do penetra no salão nobre das autoproclamadas elites. A Veja, a Folha de São Paulo e demais mazelas adicionariam ainda os epítetos de “cachaceiro”, “analfabeto”, “populista”, “demagogo”, “anti-americano” e até... “corintiano”! O escárnio abrangeu igualmente as supostas dificuldades do expoente petista com o vernáculo, questionando a sua capacidade de comunicação (sic).

No pleito de 2002, a resposta veio com o bordão “Lulinha, paz e amor”: o antídoto para romper o isolamento dos críticos do projeto conservador. A “paz”, porém, não nasceria da criminalização das mobilizações sociais para evitar turbulências na ordem estabelecida. Essa ignomínia autoritária pertence aos tucanos. Vide o sem-terra assassinado pelo rifle de Yeda Crusius no Rio Grande do Sul, os professores espancados pelos cassetetes de José Serra em São Paulo, os petroleiros ameaçados pelos tanques de FHC no Rio de Janeiro. O “amor” prenunciava o diálogo aberto com as lideranças populares, os novos conselhos, a reformatação dos existentes e o incentivo à participação cidadã na confecção de políticas públicas como um meio de superar a rarefação da atmosfera social produzida pelas políticas neoliberais (Gerson Almeida, “É a democracia, senhores!”, Carta Maior, 23/12/2010).

Os conflitos continuaram a espocar, agora abordados sob o ângulo do trabalho. A diferença é que incorporaram-se na agenda da acumulação as demandas de inclusão societária e controle administrativo transparente, como ilustram os programas que aspiram ser assimilados às políticas de Estado: o Bolsa Família, o ProUni e os instrumentos criados pela Controladoria-Geral da União para coibir a malversação do erário nas duas pontas, a dos corruptos e a dos corruptores. Essa profissão de fé no bem comum, autêntica declaração de guerra às práticas patrimonialistas, foi ressaltada no discurso de posse de Dilma Rousseff: “Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle e investigação terão todo o meu respaldo para atuarem com firmeza e autonomia”.

Ética da responsabilidade
Para alguns, o chamado lulismo promoveu a conciliação de classes para contemplar a burguesia. Mas o que aconteceu é que, de 2002 a 2010, a renda dos 10% mais pobres cresceu seis vezes mais (72%) que a renda dos 10% mais ricos (11,2%), segundo dados do Ipea. As privatizações do patrimônio público foram interrompidas e os serviços públicos aperfeiçoados. Os ajustes fiscais trocados por gastos sociais. O Estado tornado indutor do desenvolvimento sustentável para extirpar as discrepâncias sócio-regionais. A integração latino-americana revigorada com o rechaço à Alca, que só atende as ambições geopolíticas dos EUA. O Mercosul empoderado pela aprovação do Estatuto da Cidadania. Nada que caracterize uma “direitização” ou legitime a retórica pemedebista da “despolarização”, como se houvesse política sem polarização e democracia sem dissenso. De resto, o PT manteve a posição programática de enfrentamento sistemático ao neoliberalismo.

Para outros, o petismo teria abandonado os preceitos ideológicos de origem e se institucionalizado. Com o que, o PT deixou de ser um “partido de massas” para converter-se em um “partido de notáveis” controlado por centros individuais de decisão, de acordo com as categorias formuladas na entrada dos anos 50 por um clássico da sociologia política, Maurice Duverger. A presença do PT na institucionalidade esvaziou os núcleos de base e afrouxou os vínculos com os movimentos sociais, é vero. No entanto, não se depreende daí que apagou a rebeldia. Ou o socialismo. Conceito usado com moderação porque a proposta de um novo sistema econômico não constitui uma bandeira de luta. O feudalismo deu lugar à modernidade quando esta não tinha nome. Ninguém mobilizou-se, à época, contra o antigo regime e a favor do “capitalismo”. Mobilizou-se contra as desigualdades insuportáveis. Há que se retirar a carga dramática que conduz, do fetichismo dos rótulos, ao sectarismo.

O que se incrimina na compreensível metamorfose do PT é o fato de que as suas próprias atribuições institucionais na esfera estatal obrigaram-no a adotar uma “ética da responsabilidade”, de modo a medir as consequências políticas e jurídicas de cada ato no quadro de um Estado democrático (e social) de Direito. Deve-se olhar a floresta, para além da árvore. O reconhecimento da realidade não equivale à aceitação de sua imutabilidade. É, antes, o requisito para assumir um papel protagonista nas mudanças, ao invés de se refugiar em um vanguardismo abstrato. O cálculo é obrigatório para que atitudes voluntariosas não ponham em risco, seja a estabilidade da economia, seja a governabilidade política. Como proceder diferente, sem alijar-se do embate concreto nas circunstâncias dadas?

Aferrar-se à “ética da convicção”, para a qual valem apenas os princípios e não o resultado das ações, seria incompatível com a atividade política. Tão somente as crenças religiosas podem guiar-se por normas de conduta alheias à opinião pública e aos dispositivos constitucionais. À exceção dos grupos marginais na competição política (très républicain de conviction et très aristocrate de tempérament), nenhum partido com uma inserção social relevante pode pautar-se pela pura subjetividade, sem dimensionar o dia seguinte. Não por fazerem “parte do sistema”, mas para incidirem na grande política com o propósito de modificar as estruturas de dominação. “Temos de recriar a nossa cultura política. Não significa renunciar a princípios, abdicar de sua ideologia, mas colocar o patamar de disputa em um nível superior”, resumiu Tarso Genro (Zero Hora, 31/12/2010).

Consciência política
As eleições de 2010 demonstraram o discernimento político adquirido por enormes parcelas do eleitorado. Conferiram ao PT a maior bancada federal, 88 deputados, cacifando-o para assumir o que era exclusividade do PMDB, que somou 79 cadeiras: o comando da “Casa dos Comuns” (de incomuns aumentos nos vencimentos). As vertentes do descarado entreguismo, PSDB e DEM, elegeram 53 e 43. O PV, da candidatura que reivindicava a “terceira via”, 15. O PSOL, 3. O PSTU, nenhum. Conquanto dissidências internas provocassem o surgimento de duas outras agremiações, o PT mantém-se como a principal corrente de esquerda, com capilaridade em todas as regiões. Considerando a votação do PSB, que colocou 34, do PDT, 28, e do PC do B, 15, os “anjos tortos” recrudesceram em densidade e identidade no tocante às funções clássicas do Estado, o que é de bom augúrio.

O PT também passou de 8 para 14 senadores. Em contrapartida, a oposição de direita sofreu uma contundente derrota. O PSDB, que detinha 16 postos, caiu para 11. O DEM, que possuía 13, despencou para 6. Os números escancaram o revés que se abateu sobre o reacionarismo “sem noção”. Como os Projetos de Lei aprovados na Câmara precisam passar pelo crivo senatorial, em uma clara demasia, conclui-se que os eleitores facilitaram os trâmites ao aposentar algumas raposas da política, “um pouco de homens, outro pouco de instituição”, parafraseando Machado de Assis no conto O velho Senado: Tasso Jereissati (CE), Arthur Virgílio (AM), Marco Maciel (PE), José Carlos Aleluia (BA) e César Maia (RJ). A “turma do contra”, na espirituosa expressão veiculada na campanha para destacar o facciosismo cheio de raiva dos demotucanos ao longo dos dois mandatos de Lula.

O povo brasileiro deu prova de elevada consciência política em face da solapa da mídia empresarial, que fabricou crises à exaustão apresentando o país à beira de um iminente colapso. A unção da primeira mulher ao cargo máximo da nação não foi contradita por uma maioria parlamentar hostil. Embora a zona de compromissos da composição vitoriosa situe-se em terreno movediço, descortinam-se novas possibilidades para o governo da União, cuja estratégia consiste em sedimentar a revolução democrática em curso, sem permitir retrocessos. Como declarou a presidenta eleita na fala inaugural: “Venho consolidar a obra de Lula... quero convocar a todos a participar do esforço de transformação... sob a égide dos valores republicanos”. Explica-se a ênfase: o republicanismo é o paradigma contemporâneo do processo de democratização, capaz de recuperar o espaço público para o exercício da liberdade, inspirar a virtude cívica no engajamento das questões públicas, expandir as referências sociais universalizadoras e projetar uma imagem do futuro.

O Congresso (alvo a ser priorizado pelas pressões populares, vale sublinhar) pode contribuir para que as lutas travadas em ramos isolados transcendam o economicismo e exprimam-se com uma feição política, com força para elaborar leis que valham para a sociedade inteira. Não há automatismo, no caso, conforme já revelou a experiência em matérias específicas. Apesar da histórica disposição reativo-flexível do Legislativo para negociar com o Executivo, seria temerário contar a priori com uma rede de apoio sujeita ao lema “é dando que se recebe”, franciscano na aparência e fisiológico na essência. A política não se limita ao humor oscilante dos plenários institucionais e ao particularismo da troca de votos governamentais por emendas executadas. Depende de “um movimento de classe visando à realização dos interesses dos trabalhadores sob uma forma geral”, para evocar um pensador importante e ainda atual (Carta de K. Marx a F. Bolte, 23/11/1871).

A desconstrução dos preconceitos e a melhoria das condições de vida da população são frutos dessa marcha civilizatória. A empreitada remete à afirmação da soberania do Brasil, ao fortalecimento das relações exteriores Sul-Sul e às reformas tributária e política, bem como à erradicação da pobreza e à qualificação da saúde, da educação e da segurança. Tarefas que exigem a solidariedade ativa do estadista que desceu a rampa do Planalto com 87% de apreciação positiva e 2,2% de negativa (Sensus, 29/dezembro). Os adversários são os mesmos, aliás, muitos ora do lado de dentro do balcão. Como Lula, a política precisa retornar às ruas pelo “direito a ter direitos”, a fim de compensar a previsível malemolência da vice-aliança na busca de soluções definitivas para os problemas estruturais. Não se trata de apostar na radicalidade, senão de prestar o necessário amparo ao governo Dilma.

Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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